quarta-feira, 9 de junho de 2010

do artigo: "Ensaio sobre o espaço e o sujeito. Lygia Clark e a psicanálise"


"Em seu Caminhando, de 1963, Lygia Clark faz na fita unilátera, com uma tesoura, um corte transversal que não encontra seu ponto de partida, mas prossegue em uma nova volta tornando a sua largura cada vez mais fina e seu diâmetro cada vez maior, prolongando, expandindo a torção da banda em direção a uma ruptura final — que virá necessariamente, já que a largura da fita não é infinita, mas que se retarda em uma promessa de não-corte, em um horizonte de passeio infinito da tesoura sobre o papel.

O Caminhando é uma verdadeira revolução na obra da artista: ele lhe permite abandonar a distinção sujeito/objeto, e portanto recusar radicalmente a noção de objeto de arte, em prol de uma primazia do ato. Ao propor o corte transversal da fita como o próprio trabalho artístico, Lygia desmaterializa de forma revolucionária a obra de arte, introduzindo uma sofisticada reflexão artística acerca das relações entre sujeito e objeto — ou seja, sobre a fantasia. Caminhante, o sujeito é um "itinerário interior fora de mim ", escreve Lygia em 1965 (CLARK, 1999, p.164).

Isso permite à artista radicalizar a proposta de participação do outro, do espectador, na configuração da obra. Já com seus Bichos, desde 1960 a artista convocava o espectador a ser co-autor da obra, podendo mexer nessas esculturas de alumínio cheias de articulações e provocar nelas movimentos. Lygia privilegiava aí o contato "orgânico " entre o homem e o objeto, fazendo da obra o que se dá entre os dois, como gesto de um, gerando em resposta movimento do outro. Quando perguntam à artista quantos movimentos o Bicho pode fazer, ela responde: "Eu não sei, você não sabe, mas ele sabe... ". E prossegue: "O Bicho não tem avesso " (CLARK, 1999, p.121).

É bem explorado pela crítica de arte o passo lygiano rumo à participação do espectador, no momento inaugural desta preocupação, que será compartilhada por outros artistas mundo afora e constitui uma das características da arte contemporânea. O Caminhando (re)inscreve, no esteio dos Bichos, o objeto como dentro/fora, fazendo jogo com o sujeito na própria constituição deste. Mas fazer do Caminhando uma obra é desmaterializar o objeto em favor do ato, o que radicaliza ainda a proposta de participação do outro na obra. Neste sentido Lygia abandonará o termo "obra " e "objeto " de arte em prol do termo proposição, que acentua o seu caráter de apelo ao sujeito. Pois o Caminhando também desmaterializa o próprio sujeito, vem colocá-lo em crise, subvertê-lo. OCaminhando é o próprio sujeito despertando, diríamos, de sua alienação especular. A fala de Lygia é clara a respeito: "Instável no espaço, parece que estou me desagregando " (CLARK, 1999, p.121). "Meu corpo me abandona ", diz, ainda, perguntando em seguida:

"Onde está o Bicho-eu? Eu me torno uma existência abstrata. Afogo-me em verdadeiras profundezas, sem pontos de referência com meu trabalho — que me olha de muito longe, do exterior de mim mesma. 'Fui eu quem fiz aquilo?' Perturbação. Delírio de fuga. Estou presa apenas por um fio. Meu corpo me deixou — 'caminhando'. Morta? Viva? Sou atingida pelos cheiros, pelas sensações táteis, pelo calor do Sol, os sonhos. " (CLARK, 1999, p.164)

Trata-se de um sujeito precário, que no ato poético se perde mais do que se acha, mas ao mesmo tempo retoma a dianteira sobre o objeto, engatando-o em sua vertigem, pondo em ato a fantasia. Tal ato/corte retoma a fantasia de maneira a pôr em relevo o que seria, digamos, seu "avesso ": a fantasia não é mais a tela que encobre o real, mas o corte que convoca sujeito e objeto a se (re)desjuntarem, ambos subvertidos, descentrados, caídos. Lygia anuncia então, em 1968, a respeito da obra de Hélio Oiticica, seu grande parceiro, assim como de sua própria obra (e, entenda-se, de si mesma), "o precário como novo conceito, a magia do ato na sua imanência e também a negação do objeto que perdeu toda sua carga poética ainda projetada, para se transformar num poço onde a multidão se debruça para se encontrar na sua essência " (CLARK, 1998, p.57). A essência está no fundo do poço, onde o sujeito não mais se projeta como imagem-objeto no espelho d'água de Narciso, mas se põe em vertigem, diante de uma queda iminente.

Sobre a obra O dentro é o fora (1963), uma fita de Moebius modificada, em lata, Lygia afirma ainda que "o sujeito atuante reencontra sua própria precariedade. (...) Ele descobre o efêmero por oposição a toda espécie de cristalização. Agora o espaço pertence ao tempo continuamente metamorfoseado pela ação. Sujeito-objeto se identificam essencialmente no ato " (CLARK, 1999, p.165). Nisso a operação lygiana é radical e talvez diferente da de Lacan. O corte que define o sujeito, para a artista, não se dá em ato uma vez por todas, mas é o próprio desenrolar temporal de sua tentativa, nunca alcançada e, paradoxalmente, desde o início presente.

O Caminhando põe radicalmente em questão o estatuto do objeto e do sujeito na arte, em prol de nada além de um simples ato se desenrolando no tempo. O objeto quase desaparece, e deixa de ser o complemento fixo, correlativo do sujeito. Mas o ato promove aí uma espécie de coalescência entre objeto e sujeito que desloca um e outro em favor de um espaço definido pelo movimento. Em vez de fazer cair o objeto e pôr em vertigem o sujeito, o ato artístico lygiano sustenta no tempo a oscilação entre dentro e fora, tornando-a virtualmente sem fim.

"O ato de se fazer é tempo ", sentencia Lygia (1999, p.165). "O ato de se fazer ": de fato, o sujeito se faz no ato, de maneira que quase o des-faz, o desmaterializa, por assim dizer, destacando-o de sua imagem corporal para lançá-lo na precariedade, em um súbito despertar. Tal despertar é um ato e, no entanto, não tem início nem fim, não se localiza no tempo mas é o tempo: interminável, talvez como a análise segundo Freud. Não se captura, em ato, mais do que um lapso perdido de tempo, no qual se dissolve o corpo e o sujeito em prol da fugidia e poética sensação.

"Quero viver como o ponteiro do relógio / mil vezes segue o mesmo roteiro / momento vivo, ele é num ponto / A referência do real. " (CLARK, 1999, p.132)

Em 1973, Lygia formula a idéia de que a própria vida (a simples vida, o fazer-se tempo) seria uma proposição, o que a faz ficar quase um ano sem realizar qualquer trabalho de arte. Ela nomeia Pensamento mudo isso que "era o simples viver sem fazer qualquer proposição, era o reaprender, ou por outro lado, havia, através das outras proposições, reaprendido a viver e estava me expressando através da vida! " (CLARK, 1999, p.270)."





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